A Maconha e o Mito do Prazer Inofensivo
O que se sabe hoje sobre os danos e o potencial medicinal da droga, segundo uma das maiores especialistas do mundo
A psiquiatra Nora D. Volkow, diretora do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas dos Estados Unidos, acaba de prestar mais uma contribuição a um dos debates quentes e atuais na fronteira tênue entre saúde e justiça.
Num momento em que tantos países – entre eles, o Brasil – discutem os prós e contras da legalização da maconha (para uso medicinal ou recreativo), Nora reuniu num artigo científico o conhecimento mais atualizado sobre os efeitos da droga.
Está lá um bom resumo do que se sabe hoje sobre os danos provocados
pela maconha e sobre os possíveis benefícios no tratamento de doenças.
O
trabalho foi publicado em 05/06/2014 no New England Journal of Medicine.
Nesta coluna, destaco as principais conclusões da equipe de Nora, uma
das mais respeitadas pesquisadoras sobre drogas em todo o mundo.
DEPENDÊNCIA
Cerca de 9% daqueles que experimentam maconha vão se tornar
dependentes. Entre os que fumam maconha todos os dias, a taxa de
dependentes chega a 50%.
Um em cada seis garotos que começam a usar a
droga na adolescência se torna dependente. A probabilidade de
apresentarem sintomas de dependência dois anos após a primeira
experiência é até quatro vezes mais elevada que a verificada entre os
que começam a usar a droga na idade adulta.
DESENVOLVIMENTO DO CÉREBRO
O uso de maconha na adolescência é a grande preocupação dos
especialistas. O desenvolvimento do cérebro só fica completo por volta
dos 21 anos. Antes disso, ele é altamente vulnerável a agressões
ambientais, como a exposição ao tetrahidrocanabinol (THC), um dos
principais componentes da maconha.
SAÚDE MENTAL
Em vários estudos, o uso regular da droga foi associado a um risco
mais elevado de desenvolvimento de ansiedade e depressão.
Ainda não foi
possível estabelecer uma relação de causa e efeito. Não se sabe se a
maconha é, de fato, a causa dessas doenças. A droga também parece
aumentar o risco de psicoses (entre elas, a esquizofrenia).
Isso ocorre,
em especial, entre as pessoas que já têm uma predisposição genética à
doença. Em pessoas com esquizofrenia, a droga pode exacerbar a doença.
Um estudo demonstrou que o uso regular de maconha pode antecipar o
primeiro surto em até seis anos.
DESEMPENHO ESCOLAR
A droga pode provocar falhas de memória que dificultam o aprendizado e
capacidade de reter informações.
Alguns estudos demonstram que os
dependentes de maconha têm pior desempenho escolar e maior probabilidade
de abandono dos estudos.
Pode ocorrer também um déficit cognitivo. O QI
(coeficiente de inteligência) dos que fumaram maconha com frequência
durante a adolescência tende a ser mais baixo.
ACIDENTES DE TRÂNSITO
A exposição imediata ou frequente à maconha prejudica as habilidades
motoras e aumenta o risco de acidentes de trânsito. Nos Estados Unidos, a
maconha é a droga ilícita mais frequentemente associada a desastres nas
ruas e estradas.
CÂNCER E OUTRAS DOENÇAS
O risco de tumores malignos em pessoas que fumam maconha continua não
esclarecido. As evidências disponíveis sugerem que o risco de câncer é
maior entre os que fumam tabaco.
A maconha pode provocar inflamações nas
vias aéreas e doenças crônicas como bronquite. A droga também tem sido
associada a um risco mais elevado de problemas vasculares que podem
provocar infarto e acidente vascular cerebral (AVC). Essa relação é
complexa e ainda não está completamente esclarecida.
Como se vê, a crença de que fumar maconha é um prazer inofensivo não
passa de mito. As evidências mais atuais reunidas por Nora podem
contribuir para o debate sobre o uso recreativo da droga. Há um segundo
debate, ainda mais doloroso, sobre o uso da maconha para fins
medicinais.
Atualmente a importação de remédios feitos a partir de componentes da
maconha não é liberada no Brasil. Só pode ocorrer com autorização
judicial.
Famílias de pacientes que sofrem com doenças graves (como
epilepsia resistente a qualquer medicamento convencional) depositam
esperança no tratamento com produtos como o spray Sativex, do
laboratório britâncio GW Pharmaceuticals.
As famílias tinham a expectativa de que a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) liberasse a importação de medicamentos
como esse. No dia 29, a Anvisa decidiu adiar a decisão. É possível que a
liberação de importação não saia tão cedo.
"No mercado, não há remédio só à base de canabidiol”, disse Dirceu
Barbano, diretor-presidente da agência. “Mesmo que o canabidiol seja
aprovado, as pessoas não poderão importar os medicamentos porque eles
têm, em sua composição, outras substâncias proscritas." É o caso do
Sativex. Além do canabidiol (CBD), ele contém THC.
Segundo Barbano, a agência não tem informações suficientes sobre os
efeitos colaterais que o canabidiol possa provocar. “O CBD tem sido
usado no Brasil em crianças e nós não detemos informações na literatura
de qual é a consequência orgânica do uso de médio e longo prazo por
crianças de diferentes idades. É dever da Anvisa evitar os efeitos
colaterais e alertar sobre os riscos”.
No artigo publicado, Nora relaciona o conhecimento mais recente
sobre o papel da maconha no tratamento de doenças. Um resumo:
ESCLEROSE MÚLTIPLA
O spray oral Sativex, uma mistura de THC e CBD, demonstrou ser eficaz
no tratamento da esclerose múltipla, da dor neuropática e de distúrbios
do sono. Está disponível no Reino Unido, no Canadá e em outros países.
Nos Estados Unidos, ainda não recebeu a aprovação da FDA, a agência que
controla medicamentos.
GLAUCOMA
Há evidências de benefícios da maconha em pacientes com glaucoma, uma
doença associada ao aumento da pressão no olho. A droga reduz a pressão
intraocular, mas o efeito é transitório. Tratamentos convencionais já
existentes são mais eficazes. A discussão persiste e outros estudos são
necessários.
NÁUSEAS
Ajuda a combater náuseas provocadas pela quimioterapia. Foi um dos primeiros usos médicos do THC e outros canabinóides.
ANOREXIA
Relatos médicos indicam que a maconha melhora o apetite e favorece o
ganho de peso em pessoas com aids. Faltam estudos de longo prazo que
justifiquem a adoção de maconha por pacientes que tomam drogas contra o
HIV.
DOR CRÔNICA
A maconha é usada há séculos para aliviar a dor. Tanto a maconha
quanto o dronabinol, uma formulação farmacêutica à base de THC, são
capazes de reduzir dores. O efeito proporcionado pelo dronabinol
mostrou-se mais prolongado.
INFLAMAÇÃO
Os canabinóides (THC e canabidiol) têm efeito antiinflamatório. O
canabidiol tem atraído especial interesse como tratamento porque não
provoca efeitos psicoativos. Estudos com animais revelaram que o
canabidiol pode se tornar um recurso promissor contra a artrite
reumatoide e doenças intestinais inflamatórias, como colite e doença de
Crohn.
EPILEPSIA
Uma pequena pesquisa realizada com pais de crianças que sofrem
convulsões frequentes, publicada no ano passado, trouxe alguns dados.
Participaram apenas 19 famílias que trataram os filhos com maconha com
alto teor de canabidiol.
Duas famílias (11% da amostra) declararam que a criança ficou
completamente livre de convulsões. Oito famílias (42%) observaram
redução superior a 80% na frequência das crises. Seis famílias (32%)
notaram redução de até 60% na frequência dos episódios.
Embora esses relatos sejam promissores, faltam informações sobre a
segurança e a eficácia do uso de maconha no tratamento da epilepsia. Em
animais, há cada vez mais evidências da contribuição do canabidiol como
um agente antiepilético.
Diante do sofrimento de um filho, as famílias têm pressa. É
compreensível que se sintam inconformadas com os trâmites burocráticos e
as intermináveis reuniões das autoridades sanitárias.
A sociedade brasileira também tem pressa. Quer uma solução eficaz de
combate ao tráfico de drogas. A legalização da maconha é defendida por
gente séria e bem intencionada. O erro é tentar minimizar os danos à
saúde que o fácil acesso à droga pode acarretar.
A maconha consumida hoje não é a mesma dos anos 60. A potência da
droga (o conteúdo de THC) verificada em amostras confiscadas pela
polícia americana não para de crescer. Nos anos 80, era de 3%. Em 2012,
chegou a 12%. Não há razão para acreditar que a droga disponível no
Brasil seja menos perigosa.
A maior permissividade cultural e social em relação à maconha
aumentará o número de adolescentes expostos regularmente à droga? No
caso de uso generalizado de maconha, quais serão os efeitos do fumo
passivo? Ninguém sabe.
“O efeito de uma droga (legal ou ilegal) sobre a saúde individual não
é determinada apenas por suas propriedades farmacológicas”, escreveu
Nora. “Ela é determinada, também, pela sua disponibilidade e aceitação
social.”
O tabaco e o álcool oferecem uma boa amostra do que pode acontecer.
Juntos, eles respondem pela maior carga de doenças provocadas por
drogas. Não porque eles sejam mais perigosos que as drogas ilegais, mas
porque o status de droga legal aumenta a exposição da população a elas.
Estamos dispostos a pagar para ver com a moeda do desenvolvimento saudável?
Fonte: Revista Época
Gil Corrêa.
Diretor, Escritor e Pesquisador.
Ministério Adonai.
O Portal do Saber.
08/2014.